sábado, 9 de janeiro de 2021

Esperança

Mário Quintana

Lá bem no alto do décimo segundo andar do Ano Vive uma louca chamada Esperança E ela pensa que quando todas as sirenas Todas as buzinas Todos os reco-recos tocarem Atira-se E - ó delicioso voo! Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada, Outra vez criança... E em torno dela indagará o povo: - Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes? E ela lhes dirá (É preciso dizer-lhes tudo de novo!) Ela lhes dirá bem devagarinho, para que não esqueçam: - O meu nome é ES-PE-RAN-ÇA...

sábado, 12 de dezembro de 2020

A lucidez perigosa

Clarice Lispector

Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.

Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
- já me aconteceu antes.

Pois sei que
- em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade -
essa clareza de realidade
é um risco.

Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve
para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Acontecimento

Vinícius de Moraes


Haverá na face de todos um profundo assombro 
E na face de alguns, risos sutis cheios de reserva 
Muitos se reunirão em lugares desertos 
E falarão em voz baixa em novos possíveis milagres 
Como se o milagre tivesse realmente se realizado 

Muitos sentirão alegria 
Porque deles é o primeiro milagre 
Muitos sentirão inveja 
E darão o óbolo do fariseu com ares humildes 
Muitos não compreenderão 
Porque suas inteligências vão somente até os processos 
E já existem nos processos tantas dificuldades... 

Alguns verão e julgarão com a alma 
Outros verão e julgarão com a alma que eles não têm 
Ouvirão apenas dizer... 
Será belo e será ridículo 

Haverá quem mude como os ventos 
E haverá quem permaneça na pureza dos rochedos. 
No meio de todos eu ouvirei calado e atento, comovido e risonho 
Escutando verdades e mentiras 
Mas não dizendo nada. 
Só a alegria de alguns compreenderem bastará 
Porque tudo aconteceu para que eles compreendessem 
Que as águas mais turvas contêm às vezes as pérolas mais belas.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Da calma e do silêncio

Conceição Evaristo


Quando eu morder
a palavra,
por favor,
não me apressem,
quero mascar,
rasgar entre os dentes,
a pele, os ossos, o tutano
do verbo,
para assim versejar
o âmago das coisas.

Quando meu olhar
se perder no nada,
por favor,
não me despertem,
quero reter,
no adentro da íris,
a menor sombra,
do ínfimo movimento.

Quando meus pés
abrandarem na marcha,
por favor,
não me forcem.
Caminhar para quê?
Deixem-me quedar,
deixem-me quieta,
na aparente inércia.
Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Deixa-me seguir para o mar

Mário Quintana

Tenta esquecer-me... 

Ser lembrado é como evocar-se um fantasma... 

Deixa-me ser o que sou, o que sempre fui, um rio que vai fluindo...


Em vão, em minhas margens cantarão as horas,

me recamarei de estrelas como um manto real,

me bordarei de nuvens e de asas,

às vezes virão em mim as crianças banhar-se...

Um espelho não guarda as coisas refletidas! E o meu destino é seguir... é seguir para o Mar, as imagens perdendo no caminho... Deixa-me fluir, passar, cantar... toda a tristeza dos rios é não poderem parar!

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

Cântico II

 Cecília Meireles

Não sejas o de hoje. 
Não suspires por ontens… 
Não queiras ser o de amanhã. 


Faze-te sem limites no tempo. 
Vê a tua vida em todas as origens. 
Em todas as existências. 
Em todas as mortes. 
E sabes que serás assim para sempre. 
Não queiras marcar a tua passagem. 


Ela prossegue: 
É a passagem que se continua. 
É a tua eternidade. 
És tu.

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Mar Português

Fernando Pessoa

Ó mar salgado, quanto do teu sal

São lágrimas de Portugal!

Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!

Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.